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Novela não é uma dramaturgia menor

Um dos maiores especialistas no gênero explica como as telenovelas evoluíram com a sociedade e garante que estão longe do declínio e de se esgotar comercialmente.

 

O Brasil produz a melhor teledramaturgia do mundo e inova ao levar para o folhetim eletrônico temas explosivos como amor no celibato, homossexualismo, drogas e luta de classes. Mulheres Apaixonadas, por exemplo, desencalhou o Estatuto do Idoso. Sustentáculo do entretenimento da América Latina, a telenovela é um fenômeno popular de massa capaz de ditar modas e modos. “Toda novela tem que ter o herói e o vilão, obstáculos para se consumar um grande amor, temas da realidade, conflitos, uma trama paralela interessante”, assinala Mauro Alencar, doutor em teledramaturgia pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador e consultor da Rede Globo.

Considerado o maior especialista no assunto do País, ele escreveu, entre outros livros, A Hollywood Brasileira – Panorama da Telenovela no Brasil, e integra o seleto grupo da Academia de Artes e Ciências da Televisão, em Nova York, responsável pela realização do Emmy, o prêmio máximo da televisão americana. A paixão pelo veículo vem desde os cinco anos de idade, quando sonhava integrar a família Robinson, do mítico seriado Perdidos no Espaço. Nesta entrevista, ele faz uma radiografia do gênero, destacando aspectos da sua linguagem e abordando a sua influência no cotidiano dos brasileiros.

Pesquisas apontam que 2 bilhões de pessoas no mundo assistem a telenovelas. Por que esse gênero de entretenimento fascina tanto?
A novela é a nossa história. Tudo o que acontece na ficção acontece na vida real, seja drama, comédia, realismo mágico, uma trama ambientada em outra dimensão. Antes eram as arenas do teatro grego, depois os folhetins na França de 1836. Na sequência, as radionovelas, impulsionadas pelas indústrias de sabão em pó, que funcionaram como alento à Depressão de Nova York nos anos 1930. Hoje são as telenovelas, que celebram personagens e figuras que se superam, ultrapassam obstáculos, cobras e lagartos e saem vencedores. Todo mundo precisa de uma dose diária de ficção para sobreviver. E o gênero que melhor traduz esse desejo consciente ou inconsciente é a telenovela.

A novela influencia ou é influenciada pela sociedade?
É ao mesmo tempo agente de mudanças e espelho. Se um assunto vai parar na novela, pode ter certeza de que até num bar de esquina ele já foi abordado. Ao autor cabe misturar o tema real com o ficcional. Dancin’Days (1978) foi a novela que produziu a febre da discoteca ou foi a discoteca que fez a novela virar febre? Ela acabou no verão de 1979 e, coincidentemente, a onda disco também definhou. Na Rússia, nos anos 1990, o então presidente Boris Yeltsin chegou a programar um supercapítulo de Mulheres de Areia para evitar que uma massa de eleitores viajasse para suas dachas no dia da eleição.

Ela também desperta impulsos imprevisíveis do público...
Existe esse outro aspecto também, o do fanatismo, gente que confunde ficção e realidade. O ator André Gonçalves foi agredido na rua quando interpretava um homossexual em A Próxima Vítima (1995). Célebres intérpretes de vilões como Rubens de Falco (Leôncio), Beatriz Segall (Odete Roitman) e Joana Fomm (Lúcia Gouveia) sentiram a hostilização de certos espectadores que não sabem distinguir que uma novela é, antes de mais nada, uma realização artística, recriação da realidade. Dias Gomes costumava dizer que são as pessoas que fazem a cabeça da televisão.

Por que as novelas ditam modas e modos com tamanha facilidade?
Por meio de um mecanismo de identificação. Muitas mulheres usaram meias fosforescentes listradas e coloridas, com sandálias de tiras e salto alto, da personagem de Sônia Braga em Dancin’Days. Outras tantas copiaram o corte de cabelo repicado em camadas de Tônia Carrero em Pigmalião 70 (1970). O figurino de Jade em O Clone (2001) impulsionou o comércio da Rua 25 de Março, em São Paulo. Por causa de Chocolate com Pimenta (2003), as lojas Ofner e Kopenhagen venderam chocolates com pimentas como nunca. Ninguém assiste indiferente a uma novela e tanto faz se é um morador de favela ou de uma mansão. Claro, o que irá mediar a interferência emocional é o grau de cultura e compreensão da realidade de cada um.

O Brasil é o país que melhor desenvolveu o formato no mundo?
O nosso grande diferencial é o padrão Globo de qualidade que imprimimos às telenovelas, um modelo para quem quer produzir aqui e no exterior. O maior nicho é a América Latina. Antropologicamente, a formação do latino, incluindo o brasileiro, foi moldada pela história parcelada, em capítulos. O europeu identifica-se mais com as minisséries e os americanos, com as séries. Israel é um dos grandes produtores de teledramaturgia. A China aprendeu a partir da experiência com Escrava Isaura. A Índia tem novela. Miami é um grande pólo de distribuição e produção. O Clone e Betty, a Feia, por exemplo, mudaram a dramaturgia no Equador. A brasileira e a mexicana são as duas grandes raízes da teledramaturgia, que inspiraram os demais países.

Muita gente acha que, comparada ao teatro e cinema, a novela é uma dramaturgia menor, que não consegue se desvencilhar dos clichês...
É a coisa mais preconceituosa que já escutei na vida. A dramaturga cubana Glória Magadan, que desembarcou no Brasil fugida de Fidel Castro, já dizia nos anos 1960 que novela é um gênero próprio. Artístico ou comercial, todo gênero tem suas especificidades, sua linguagem, sua estética, sua maneira de dialogar com o público. Uma novela tem que ter o herói e o vilão, obstáculos para se consumar um grande amor, temas da realidade, conflitos, uma trama paralela interessante. O que vai variar é a maneira de contar isso. Se virou clichê, é porque a estrutura dramática é boa.

As novelas transmitem valores questionáveis também: a exaltação do sexo como arma para conquista do poder, o culto ao dinheiro, o retrato simplista das classes sociais...
Veja bem: tudo o que as novelas apresentaram nesses sessenta anos de produção encontramos na dramaturgia universal. Ou seja, são temas explorados por textos teatrais de diversos países.

Por que as novelas da Globo não atraem tanta audiência como antigamente?
Aí é que está o equívoco. As novelas produzidas pela Globo continuam fazendo sucesso não apenas no Brasil como no exterior também, conforme atestei em Miami, num Congresso Mundial da Indústria da Telenovela e Ficção de que participei no ano passado. O que observo é que a audiência espalhou-se para outras plataformas de comunicação. Além do televisor, ela está cada vez mais presente em revistas, jornais, rádios e nas novíssimas mídias como sites, blogs, twitters.

Não se devem analisar apenas os índices de audiência com base na televisão...
Exatamente. É preciso acompanhar os movimentos sociais e tecnológicos e saber que é muito importante o quê e o quanto se fala de uma determinada telenovela. Fina Estampa, por exemplo, alcançou a capa da revista Veja e está presente de maneira intensa em todas essas novas mídias.

Falar que o gênero entrou em declínio popular é um exagero então?
Claro. Os desdobramentos em termos de audiência seguem muito satisfatórios desde os tempos de O Direito de Nascer (1964), passando por Selva de Pedra (1972), O Bem-Amado (1973), O Astro (1977), Roque Santeiro (1985), Vale Tudo (1988), O Rei do Gado (1996), Por Amor (1997) até os dias de hoje. Há de se redimensionar a telenovela a partir da sociedade informatizada contemporânea, uma vez que se verifica que não houve queda alguma de audiência. Portanto, as novelas ainda constituem um amplo sucesso, o grande sustentáculo do entretenimento da América Latina. Além de se espraiarem pelo mundo, geram inúmeros outros produtos, como trilhas sonoras, álbuns de figurinhas e objetos inspirados em suas tramas.

Em 2011 foi ao ar um remake (regravação) de O Astro. O fato de buscar um texto do passado não revela algum tipo de crise criativa?
Discordo. A nova versão de O Astro foi uma excelente atualização de Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro para uma clássica novela de Janete Clair. Vimos uma produção primorosa em forma e conteúdo, que soube compreender a estética da história original e, com isso, resgatar um texto fundamental para a história da teledramaturgia mundial transposto para os tempos atuais. É o papel do remake: criar uma nova identidade para uma produção exibida em décadas passadas, encantando novas gerações e reconquistando a audiência, que traz em sua memória afetiva e histórica personagens marcantes como Herculano Quintanilha, Amanda, Márcio, Lili, Clô e Salomão Hayala.

O aumento das ações de merchandising nas novelas é uma tendência irreversível?
É um negócio lucrativo, sem dúvida, porque possibilita uma redução no custo por capítulo de qualquer telenovela. A primeira inserção aconteceu na novela Beto Rockfeller (1968). Luiz Gustavo bebia muito uísque e toda vez que ele pronunciava a palavra Engov ganhava um cachê do fabricante. Mas a primeira ação de merchandising oficial foi em O Primeiro Amor (1972), de Walter Negrão, na qual os integrantes do núcleo jovem andavam de bicicleta Caloi. Se feito com competência e qualidade, inserido de maneira natural na trama, não vejo problemas.

Mas não há inserções despropositadas?
No início de 1980, a TV Cultura, de São Paulo, produzia novelas e tinha cenas em que um ator bebia um guaraná sem rótulo. Era muito sem graça! Vivemos num mundo capitalista, rodeados de marcas e não dá para mascarar isso. Todo projeto de merchandising é elaborado pela TV Globo, a partir das oportunidades oferecidas pelo conteúdo da novela ou que podem ser integradas de forma natural à narrativa. As ações são criadas e desenvolvidas em conjunto com os autores e diretores da trama. Sempre observo que o perfil do produto é adequado ao personagem que mais se aproxima de suas características.

Que exemplos você pode citar?
Na novela Guerra dos Sexos (1983), Vânia (Maria Zilda) e Juliana (Maitê Proença) conversam sobre a montagem da vitrine de uma famosa marca de sandálias infantis (Melissinha). Em Meu Bem, Meu Mal (1990/91), o escritório de design de Dom Lázaro Venturini (Lima Duarte) é contratado por uma empresa de cosméticos (O Boticário) para criar uma nova linha de embalagens para perfumes e batons. Em O Astro (2011), Herculano (Rodrigo Lombardi) comprou um automóvel de marca de luxo (Kia). Nesta mesma novela, muitos personagens se comunicavam por meio de um aparelho de telefonia via rádio (Nextel).

O merchandising social nas novelas não é mais um modismo?
A iniciativa de agregar valor social à trama aproximou e identificou ainda mais o público com a telenovela. Aliás, prefiro o termo “valor social” no lugar de “merchandising”. A aprovação do Estatuto do Idoso foi facilitada por conta da situação vivida pelos personagens Flora (Carmem Silva) e Leopoldo (Oswaldo Louzada) em Mulheres Apaixonadas (2003). Laços de Família (2000) despertou campanha para doação de medula. Questões de preconceito racial foram abordadas de maneira contundente em Corpo a Corpo (1984) e Pátria Minha (1994). Os problemas inerentes a um crescimento caótico da cidade foram apresentados em O Grito (1975). O autor Dias Gomes levantou temas ligados à saúde e higiene em O Bem-Amado.

De certa forma, esses temas sociais embutidos na trama não são explorados apenas pelo seu alcance comercial? Porque depois eles são esquecidos...
Certamente que não! A novela pode impulsionar um movimento social, mas mantê-lo caberá à sociedade. Seria extremamente pesado para um gênero de entretenimento ser obrigado a cuidar também de outras áreas da sociedade como a saúde pública e a educação. Não tenho a menor dúvida de que a novela brasileira foi muito além de suas matrizes mexicanas e argentinas.

Por que telenovela parece agradar mais à plateia feminina?
Isso acontecia no passado. Na época das radionovelas, patrocinadas pelas indústrias que produziam artigos de limpeza para o lar, a mulher era dona de casa e comprava o que era anunciado. Portanto, a origem industrial do gênero queria agradar ao universo feminino. Mas aí veio o fenômeno O Direito de Nascer, em 1946, na rádio cubana e nos anos 1950 no Brasil, que passou a reunir a família toda.

Os homens foram fisgados de vez...
O público masculino se interessou para valer com Beto Rockfeller, cujo personagem-título vendia sapatos de manhã e penetrava na alta sociedade durante a noite. Havia também nessa trama corrida de kart e um casal maduro discutindo a relação. Irmãos Coragem (1970) trouxe o futebol para a novela: dos três irmãos, dois trabalhavam no garimpo e um jogava no Flamengo. As chamadas exibiam cenas do Maracanã e cortavam para um garimpo ficcional no interior de Goiás. Lembrava um faroeste, um gênero essencialmente masculino.

Desde quando você é apaixonado pelo assunto?
Lembro que com cinco anos de idade eu queria fazer parte da família Robinson, do seriado Perdidos no Espaço (1985-1968). Aos oito fiquei eletrizado com Irmãos Coragem. Com nove, ganhei a trilha sonora de O Cafona (1971). Passei também a gravar os capítulos em fitas cassete, colecionar álbuns de figurinha e formar meu arquivo. A novela, para mim, era bem mais interessante que a vida real. Aos 23 anos fui fazer terapia para achar o ponto de equilíbrio entre a ficção e a realidade.

Como você chegou à Rede Globo?
Em 1990 eu estava vendo o Festival 25 anos quando percebi que haviam modificado a abertura da novela Escrava Isaura. Entrei em contato com a emissora e a equipe do Vídeo Show quis me conhecer. Dois anos depois fui contratado como o primeiro pesquisador desse programa. “Estou contratando um computador que pensa”, disse o então diretor Cacá Silveira.

Aí não parou mais...
A partir de 1995 assumi também o papel de consultor e professor de teledramaturgia nas oficinas promovidas pela emissora. No final de 2008, mais uma grande surpresa. Luis Erlanger, diretor da Central Globo de Comunicação, me convidou para integrar o seu time de profissionais. Desde então, comecei a desenvolver trabalhos dirigidos e orientados pela CGCom (Central Globo de Comunicação): coluna de quiz e textos no portal Globo.com, leitura de sinopses, aulas sobre diversos aspectos da teledramaturgia, webdocs contando a história da telenovela brasileira.

Você tem vários livros lançados...
Escrevi A Hollywood Brasileira — Panorama da Telenovela no Brasil (2002) e, entre 2007 e 2008, a coleção Grandes Novelas, um projeto da Globo Marcas. Foi um trabalho que realizei ao lado de minha amiga e colaboradora, a jornalista e contista Eliana Pace. São versões romanceadas de clássicos da telenovela: Selva de Pedra, O Bem-Amado, Pecado Capital, Roque Santeiro e Vale Tudo. Também com ela escrevi Nívea Maria — Uma Atriz Real (2008). Neste ano assinarei mais dois livros: a história da pioneira TV Paulista, que gerou a Rede Globo de Televisão, ainda sem título definitivo, e Um Século de Paulo Gracindo, o Eterno Bem-Amado, escrito a partir do documentário Paulo Gracindo, O Bem-Amado, de Gracindo Junior.

Costuma guardar lembranças de tudo a que assiste?
Eu já formei um acervo respeitável. O meu primeiro item de colecionador foi o robô de Perdidos no Espaço. Tenho gravadas praticamente todas as novelas exibidas pela tevê desde 1955, inteiras ou em capítulos esparsos, além de discos com a trilha sonora, álbuns, revistas especializadas, novelas que viraram folhetim ou romances em outros países, jogos, cartazes, brinquedos, um quebra-cabeça da novela Pai Herói (1979). Guardei a marionete que Grande Otelo manipulava em Uma Rosa com Amor (1972). Autores e atores me presentearam com capítulos e sinopses. O melhor de tudo é que o acervo tem servido de fonte e inspiração para as novas gerações, numa saudável união entre passado, presente e futuro.

(Edgar Olimpio de Souza, da revista Stravaganza, O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. , www.revistastravaganza.com.br)
(Foto: Estevam Avellar)

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