O mestre e seu discípulo

Na peça Vermelho, o dramaturgo norte-americano John Logan desembrulha rico e amplo espaço para uma poderosa reflexão sobre o papel do artista na sociedade, o significado da arte, as razões para criá-la e sua função no mundo.

 

O pintor Mark Rothko (1903-1970), um dos nomes mais expressivos nas artes plásticas do pós-guerra, está em crise. Trata-se de um homem criativo mergulhado em absoluta angústia, com sérias dificuldades de lidar com o paradoxo de ter que agradar a consumidores fúteis que podem comprar o seu trabalho. Ele discursa sobre a guerra entre arte e comércio e de como a cultura se transformou em mero entretenimento. Em sua maneira de enxergar as coisas, a arte deve ser séria ou está condenada a não merecer existir.

Assinada por Jorge Takla e estrelada por Antonio Fagundes e Bruno Fagundes, pai e filho na vida real e juntos pela pela primeira vez no palco, a vigorosa montagem dá vida a esse debate acalorado. Tudo é muito intenso, emocionante e envolvente neste texto, que extrapola os limites da discussão sobre a natureza rebelde do processo artístico e a aflição de quem busca a perfeição no ofício para alavancar observações instigantes sobre a vida e a morte.

A trama é ambientada no final dos anos 1950, no ateliê de Rothko, artista nascido na Rússia e naturalizado americano, que se tornou estrela do expressionismo abstrato, ao lado de Jackson Pollock e Willem de Kooning. O espectador acompanha o relacionamento dele, em um momento em que já começa a perder o tônus de influência, com o jovem aspirante a pintor Ken.

Mediante um cachê milionário, ele está produzindo uma série de murais para enfeitar as paredes do novo e elegante restaurante do Four Seasons, instalado na cobertura do edifício de um arquiteto renomado. Da mesma forma que o aluno vai invadir o espaço do mestre, este está prestes a coabitar o ambiente dos endinheirados.

O grande trunfo do espetáculo é que o conteúdo estético, conceitual e filosófico levado a cabo pelos personagens não se perde em verborragia chata. Concomitantemente às discussões sobre a história da arte e suas implicações, aflora uma sedutora disputa verbal entre mestre e aprendiz e seus pontos de vista e concepções acerca da arte e da vida. Um duelo entre dois homens, pontuado por músicas clássicas e respeito reverente, mesmo nos instantes mais loquazes.

Rothko não é um artista fácil de se relacionar e Ken se dá conta disso. Logo de cara ouve do mestre que hoje em dia todo mundo gosta de tudo e que vivemos sob a tirania do bem, num mundo sem discernimento. Da mesma forma, é informado de que a pintura que ele cria é para a posteridade, e não pela fama ou fortuna. "Eu estou aqui para fazer você pensar, não para pintar quadros bonitos", avisa, mesmo insistindo não ser professor – obcecado pelo significado de formas e matizes, quer ensinar o pupilo a olhar a arte não como um borrão na tela, mas como um desfile de emoções.

Culto, influenciado pela obra de Nietzsche, Rothko passeia por Sócrates a Shakespeare, Freud a Yung e ataca, com raciocínio afiado, a cultura pop do dia, desancando, por exemplo, o trompetista e cantor de jazz Chet Baker e o pintor iconoclasta Andy Warhol. Ambos, sustenta, carecem de profundidade e substância.

A montagem oferece diálogos fortes e cenas pungentes. Em uma delas, os protagonistas pintam a mesma tela como se compusessem uma sinfonia, em um momento delicado de entrelaçamento. Em outra sequência, poeticamente dilacerante, Rothko vocifera a sua visão dos murais pendurados no Four Seasons, quando teme o rebaixamento de seu trabalho a mero papel decorativo, em vez de significar veículo para a transformação. Afinal, suas pinturas estarão emoldurando um lugar de negócios, com executivos engravatados mais interessados em refeições e transações do que vermelhos e pretos.

A direção de Takla é sutil e inteligente o suficiente para não criar ruídos desnecessários. Ele desenha uma encenação que ajuda a manter as ideias em movimento e o fluxo da ação, ocupando o tempo ocioso entre as conversas dos personagens com uma série de mudanças efetuadas no palco pelos atores – telas descem e sobem e a mesa de trabalho se desloca de um ponto a outro, por exemplo.

Tais momentos de silêncio funcionam não só de contemplação como alívio para as disputas verbais que ocorrem. A minuciosa iluminação, de Ney Bonfante, tem ares de partitura porque rege o discurso de Rothko sobre a importância da luz para não quebrar o feitiço da obra e deixá-la radiante e viva.

Apesar do peso do texto, a leveza do espetáculo garante o interesse do público até o último minuto. Mesmo o clichê do artista atormentado, em crise com suas criações, tão comum no cinema, na literatura, no teatro e nas artes plásticas, é contornado satisfatoriamente pelo diretor, que mantém o foco no universo rico e pulsante da pintura. Com visível química no palco, ambos os atores destravam desempenhos apaixonados, até nas pequenas ações, como misturar a tinta, preparar a tela, debater a luz ideal para realçar um quadro.

Antonio Fagundes preenche de energia e vitalidade um personagem arrogante, vaidoso e brilhante, que caminha exalando mau humor e agressividade criativa. Seu Rothko é uma figura que cativa mesmo suando reclamações pelos poros e lascando suas obsessivas percepções sobre a vida e a arte. Ele o impregna com a ansiedade de um homem com medo de que o seu lugar no mundo da pintura esteja por um fio.

Bruno Fagundes, intérprete em processo de maturação, aproveita a ainda pouca experiência teatral a favor da composição de Ken, injetando humanidade ao assistente que luta para se tornar um pintor de vida própria. Ele faz o personagem evoluir da condição de aluno curioso para o artista que descobre a sua sensibilidade artística e adquire consciência de seu papel no jogo, chegando a desafiar a visão artística do mestre. Um dos momentos mais veementes é justamente quando ele mede forças com Rothko e defende apaixonadamente a sua forma de ver a arte.

O texto de Logan evidencia o embate de duas gerações que brigam pelo significado e o propósito da arte. Escancara o dilema de todo criador que, para sobreviver em um mundo mercantilizado, muitas vezes precisa abdicar do compromisso estético e ideológico para encher o bolso. E põe em cena um artista que, fadado ao declínio, brada contra a irrupção da próxima caravana de artistas, também tão inquieta, provocadora e talentosa quanto ele.

(Edgar Olimpio de Souza, da revista Stravaganza, O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo. , www.revistastravaganza.com.br)
(Foto: João Caldas)

Avaliação: ótimo.

Vermelho
Texto: John Logan
Direção: Jorge Takla
Elenco: Antonio Fagundes e Bruno Fagundes
Estreou: 24/03/2012
Teatro GEO (Rua Coropés, 88, Pinheiros, São Paulo. Fone: 3728-4930). Quinta a sábado, 21h; domingo, 18h. Ingresso: R$ 100 e R$ 120. Em cartaz até 29 de julho de 2012.

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