A úrtima viagem de Tonico e Tinoco

Dupla caipira abriu espaço para a música sertaneja e a uma série de cantores que seguiram esse estilo musical.

 
“Fizemos a úrtima viagem. Foi lá pro sertão de Goiás. Fui eu e o Chico Mineiro...”, canção famosíssima da dupla Coração do Brasil, Tonico e Tinoco, de autoria de Tonico e Francisco Ribeiro, que emerge lágrimas danadas trancadas no peito. E que infelizmente a vida os levou para verdadeira última viagem, deixando uma marca inigualável na música brasileira e uma saudade arrasadora.

Em 59 anos de carreira, gravaram 1.500 músicas em 220 discos de 78 rotações, 30 compactos simples e duplos, 76 LPs de 33 rotações, três CDs inéditos e 20 CDs remasterizados, num total de 50 milhões de discos vendidos. Ganharam 4 troféus Roquete Pinto, Medalha Anchieta (Comenda da Cidade de São Paulo), Ordem do Trabalho (Ministério do Trabalho), Ordem do Mato Grosso (Comendador), Troféu Imprensa, dois Prêmios Sharp de Música e o Prêmio Di Giorgio. Participaram também de vários filmes, entre eles: Lá no Meu Sertão, Vingança do Chico Mineiro, A Marca da Ferradura, Os Três Justiceiros, Luar do Sertão, o Menino Jornaleiro e Marvada Carne.

João Salvador Perez, o Tonico, faleceu no dia 13 de agosto 1994, aos 77 anos, num acidente aparentemente banal, mas que, depois dos desastres de trânsito, é considerado o mais fatal: caiu da escada do prédio onde morava. Já José Perez, o Tinoco, morreu no dia 4 de maio de 2012, aos 91 anos, devido a insuficiência respiratória e a duas paradas cardíacas.

A saga dos irmãos Perez começou no século passado. Tonico nasceu em São Manuel (SP), em 2 de março de 1917. Tinoco, em uma fazenda de Botucatu (SP), em 19 de novembro de 1920, que pertence hoje ao município de Pratânia. Eram filhos de Salvador Perez, espanhol de origem, e de Maria do Carmo, brasileira, descendente de negros com bugres. Os genes artísticos, porém, foram inseminados pelos avós maternos Olegário e Izabel, que rasgavam uma antiga sanfona alegrando, em festas, a moçada da região de Botucatu, onde moravam.

Totalmente impregnados pela música, recorrem a Virgílio de Souza, violeiro das redondezas, para aprenderem as letras das canções. Inspirados, uniram a voz e, em 1925, cantaram Tristeza do Jeca. Em 15 de agosto de 1935 fizeram pela primeira vez uma apresentação. Cantaram na Festa da Aparecidinha, de São Manuel, em uma quermesse. Uniu-se a eles o primo Miguel, formando o Trio da Roça, que não foi longevo. A mística estava na dupla. Retornaram à formação original e participaram das primeiras serenatas, alegrando festas e bailes de São João.

Moços e com a testosterona à flor da pele, tinham esperanças de arrumar um namoro. Tonico se apaixonou por Zula, filha do administrador da fazenda em que moravam, Antônio Vani. Só que nem tudo é como a gente quer. O pai da moça vetou o namoro. Com o peito rachado, transbordou a sua dor para a arte. Compôs a magistral e inesquecível Cabocla.

Bola para frente. A vida tem que continuar. No Brasil dos anos 1930, só existiam 65 emissoras de rádio e 30 mi1 aparelhos receptores em todo o País, para uma população de 35 milhões de pessoas. Como a penetração musical através da mídia é ínfima, e portanto sem grandes músicos para idolatrar, eles faziam sucesso ao vivo pelos cantos da região. Mas, como sempre trabalharam na roça, largar o batente nem pensar. Nas folgas do trabalho é que dedilhavam o violão pondo para fora dos pulmões a voz inconfundível. Cantavam as modas de viola de Jorginho do Sertão, um autor imaginário, que utilizavam para assinar suas canções. Elas falavam das crises no País, como as revoluções de 1930 e 1932.

Em 1937, partem para Sorocaba (SP), com toda a família à procura de outros horizontes. Tonico foi ser servente na Pedreira Santa Helena, fábrica de cimento do grupo Votorantim. Tinoco virou engraxate, na Estação Sorocabana. O irmão Chiquinho coloca as mãos na construção da Rodovia Raposo Tavares, que liga o Sul de São Paulo ao Mato Grosso do Sul.

Tempos difíceis, que ficaram mais difíceis ainda. Nada dá certo. Tomam a decisão de voltar ao campo outra vez. Rumam a São Manoel e se assentam na fazenda São João Sintra. Mas, como hoje chove, amanhã pode ter sol. E foi a luz que iluminou aquela família. A volta possibilitou aos Irmãos Perez a primeira chance de cantar na Rádio Clube de São Manuel, levados pelo administrador da fazenda, José Augusto Barros.

Faziam uma dobradinha dolorosa, mas gratificante. Até o final de 1940, trabalhavam na roça durante a semana e aos domingos cantavam na emissora da cidade. Só por amor à arte, sem ganhar. No entanto, as dificuldades não iam embora. O que fazer? Migrar outra vez. Não teve jeito, a cidade de São Paulo agora era a meta. Em 1941, pegam as trouxas e desembargam na capital do estado.

As três irmãs foram trabalhar em casa de família, Tinoco, num ferro-velho, Chiquinho na Metalúrgica São Nicolau e Tonico foi carpir nas chácaras do bairro de São Amaro. Como as suas verves não abandonavam o mundo do espetáculo, aos domingos iam à Rua Lins de Vasconcelos, no bairro do Cambuci, assistir ao circo. Mais uma vez a luz os acompanhou. Conheceram Raul Torres e Florêncio, a dupla de violeiros mais famosa de São Paulo, e depois foram apresentados a Teddy Vieira. Começava aí a rede de relacionamento rumo ao estrelato.

Programa de calouros — Era a terrível época da Segunda Grande Guerra Mundial. No rádio, os ouvidos estavam grudados nas notícias do Repórter Esso, transmitidas pelas rádios Nacional, do Rio de Janeiro, e Record, de São Paulo. E é em São Paulo que a Dupla Coração do Brasil (batismo feito em 1951 pelo humorista Saracura, em virtude da maneira como interpretavam todos os ritmos regionais do País) se inscreve em programas de calouros.

Num concurso promovido pelo capitão Furtado, que estava sem violeiro em seu programa Arraial da Curva Torta, na Rádio Difusora, cuja intenção era preencher justamente a vaga, Tonico e Tinoco passam com louvor. Na primeira eliminatória, os Irmãos Perez cantaram o cateretê Tudo Tem no Sertão. Classificados à final, interpretaram Adeus Campina da Serra.

Consagração! Quando terminaram, o auditório aplaudiu de pé, em meio a lágrimas. Bis e mais bis. Eles entonavam diferente, com afinação fina e alta. A partir daí, o profissionalismo. Finalmente o tão esperado profissionalismo. No dia seguinte estavam contratados pela Rádio Difusora.

O salário era algo que jamais eles tinham imaginado. Agora a vida poderia ficar doce. Mas havia um pequeno problema. O Capitão Furtado achava que o nome da dupla, Irmãos Perez, não era original com suas vozes gêmeas. Era muito espanhol. Batizou-os na hora, de Tonico e Tinoco. Nascia a lenda.

O primeiro palco público, agora como profissionais, foi o Cine Catumbi, em São Paulo. Depois, pé na estrada. Enfiaram-se para o interior de São Paulo cantando sem parar, às vezes até três semanas. Apresentaram-se em cinemas, clubes e até em pátios vazios de armazéns. Quando terminaram a primeira turnê, foram contar a féria. Tiveram lucro e dividiram a importante quantia.

Agora, a gravação. Entraram em estúdio em 1944, lançando o cateretê Vez de Me Agradecê, cujo lançamento para os rádios aconteceu em agosto de 1945. Nos estúdios, um fato pitoresco. Quando colocaram a voz no lado B do disco, inflamaram tanto a voz que chegou a estourar o microfone do local. Para moldar a voz em ambiente fechado, estudaram durante seis meses aula de canto.

Com tudo tinindo, no ano de 1946, a grande glória. Lançam Chico Mineiro, consagrando-se definitivamente como a dupla sertaneja mais famosa do Brasil. Até então já haviam feito cinco discos. Nada de grande sucesso. A gravadora, já enfezada com o não retorno financeiro, os coloca na parede: ou vai ou racha. Chico Mineiro rachou de ganhar dinheiro. Os dois irmãos compraram a primeira casa com o dinheiro da modinha.

Os anos 1950 colocaram a música sertaneja em seu maior patamar. E Tonico e Tinoco eram os tops da modalidade inspirando duplas novas como Zé Carreiro e Carreirinho (1950), Zico e Zeca (1952), Irmãs Galvão (1954), Tião Carreiro e Pardinho (1956), Liu e Léu (1957), Craveiro e Cravinho (1959). Continuavam com um grande campo de trabalho baseado no circo, visto que levantavam a lona, só no estado de São Paulo, cerca de 200 deles.

E os sucessos não paravam — Gravavam e continuavam vendendo muito: Boiadeiro do Norte (Zulmiro), em 1951; Fim de Baile (Tonico/Zé Paioça), em 1954; e Maldita Cachaça (Tonico/Ana Maria Pereira/Capitão Furtado), em 1956. Em 1955 gravam de Mário Vieira, com a participação especial de Araci de Almeida, os cateretês Tô Chegando Agora e Ingratidão. Depois vieram: Canta Moçada (Tonico/Nhô Fio); Boiada (Zé Paioça) e Moreninha Linda (Tonico/Priminho/Maninho), em 1960. Morão da Porteira (Raul Torres/João Pacífico) e Chofer de Caminhão (Tonico/Ado Benatti) são sucessos de 1962.

Mas nem tudo era tão doce. No final de 1960, a tuberculose de Tonico, moléstia que o acompanhara desde 1940, piora. O músico segue então para o que era de melhor em tratamento no Brasil. Interna-se em Campos do Jordão (SP). Em seu lugar, assume o seu irmão Chiquinho, cantando em rádios e também nos shows e nas gravações.

Tonico faz uma cirurgia e deixa o hospital curado, mas temendo não voltar mais a cantar. Tinoco, por meio da Rádio Nacional (onde a dupla fazia um programa chamado Na Beira da Tuia), pediu aos fãs que rezassem pela saúde de Tonico. Ele voltou a cantar com mais força e beleza. Como eram devotos de Nossa Senhora Aparecida, a quem a dupla atribuiu sua cura e também para a mãe dos artistas rezar, construíram na Vila Diva, em São Paulo, uma capelinha que recebe romeiros e devotos até hoje.

A vida prossegue. Em 1964, com 20 anos de carreira, trocam de gravadora lançando Arrasta-pé na Tuia e Baianinha. Ainda irão completar a discografia: Rei dos Pampas (Raul Torres) e Pinho Sofredor (Fêgo Camargo/Capitão Furtado), em 1964. Brasil Caboclo (Tonico/Walter Amaral), Beijinho Doce (Nhô Pai) e As Três Cuiabanas (Zé Carreiro/Carreirinho) são sucessos de 1965.

O cinema não foi esquecido. Em 1966 filmam Obrigado a Matar, de Eduardo Llorente, um filme baseado na lenda do Chico Mineiro. No mesmo ano lançam Adeus Mariana (Pedro Raimundo), Curitibana (Tonico/Pirigoso) e Artista de Circo (Zé Tapera), com estrondoso sucesso. Em 1971 gravam Chalana (Mario Zan/Arlindo Pinto). Entra 1972, depois de vários filmes no currículo, apostam em mais outro. Rodam Luar do Sertão, de Osvaldo de Oliveira, e fecham o ciclo do cinema, devido a enormes prejuízos.

Quanto ao rádio, em 1969, assinam com a Bandeirantes, permanecendo até 1983. Antes disso ainda, assinalam uma das maiores glórias dos sertanejos. Em 1979, no dia 6 de junho, eles se apresentam no Teatro Municipal de São Paulo, num show de três horas, com público de 2.500 pessoas que lotou o local.

A única brecha na carreira era a televisão. Era, pois no ano de 1983 estreiam o programa Na Beira da Tuia, na TV Bandeirantes, e lançam o filme O Menino Jornaleiro, só que dessa vez como coprodutores. Em 1984, participam da película A Marvada Carne, de André Klotzel, só que como convidados especiais.

Por fim, em 1994, gravam o seu último CD, com produção de José Homero e Chitãozinho, com participação especial de Chitãozinho & Xororó e Sandy & Júnior. Os carros-chefes do trabalho são as músicas Coração do Brasil (Joel Marques/Maracaí) e Chora Minha Viola (Nilsen Ribeiro/Geraldo Meirelles).

Como Tonico falece nesse ano, Tinoco convoca o seu filho Tinoquinho para seguir e não deixar cair no ostracismo uma marca irrepreensível. Mas quem é bom nunca morre. Tanto é que todas duplas de hoje em dia, inclusive o estilo evolutivo do chamado sertanejo universitário, germinaram de um só órgão: A Dupla Coração do Brasil.

Comente este texto pelas redes sociais abaixo ou escreva para O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.